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SUGESTÃO DE LEITURA: ARTIGO DE EDUARDO SÁ SOBRE A FAMÍLIA

1. Há quem tenha pais e quem tenha filhos. Mas são raras, muito raras, as pessoas que, apesar desses privilégios, são uma família. Falta-lhes, em resumo, o espírito santo.

O espírito santo talvez represente uma forma metafórica de se dizer, por outras palavras, que uma família seria (quase por inerência) o lugar onde se estaria “em deus”. Isto é, o lugar onde - sem nunca se prescindir da singularidade de cada uma das pessoas que faz parte dela - se cria, em muitas circunstâncias, um tamanho sentimento de comunhão que, em função disso, a paz, a bondade, a beleza e a verdade parecem tão simples e tão exequíveis que, por isso mesmo, geram o entusiasmo (ou o amor pela vida, se preferirem). Visto assim, e continuando por esta tentativa de aceder aos conteúdos que a metáfora guarda em si mesma, o espírito santo seria um estado tão precioso e redentor que, inevitavelmente, talvez todos acabemos a considerá-lo, empiricamente, como sagrado.

Uma família não é, pois, um conjunto de pessoas com laços de consanguinidade. Para ela contribuem as pessoas que estão “na primeira fila do nosso coração”, mais as outras que estão a chegar-se a essa “fila”, e as pessoas que foram morrendo dentro de nós, e aquelas que, morrendo por fora, vivem em nós, mais as outras de quem, formalmente, nos divorciámos. Sempre que as somos capazes de ligar a todas, nem que seja por momentos, ou a propósito dum pedaço com sentido para nós.

Considerando, como até aqui, o espírito santo como aquilo que a gera, nunca temos uma família. Seremos, quando muito, uma família. De vez em quando ou, de preferência, muitas vezes. Assim saibamos contribuir para que ela se recrie nesses vários momentos. Por outras palavras: quando nasce uma criança pode renascer uma família; tal como sucede quando nos morre alguém, ou quando morremos para um projeto, ou quando uma relação se “constipa”, ou quando o amor adoece, ou quando, ou quando, ou quando... Quanto mais desafiante, mais plural e mais complexa for a nossa vida mais lapidamos (mas, também, mais exigimos e, por isso mesmo, mais podemos erudir) o espírito santo. Já quando alguém fala da sua família e da família do seu marido, tomando um exemplo vulgar, ajuda-nos a compreender que o casamento é, muitas vezes, pela incapacidade de ambas as famílias que se ligam se abrirem ao espírito da família (ou ao espírito santo), quem melhor o estraga.

Uma família, quando nasce, não é para sempre. Ela é frágil. E é tão delicada como a própria metáfora acerca do espírito santo nos deixa entender. Em função disto, quem considera a família uma instituição estará a assumir, entre linhas, que à falta de gestos que a tornem, frequentemente, preciosa e sagrada, fica a reivindicação dum estatuto que, em verdade, não existe. Família é um estado de espírito. É uma fantástica ilusão (não uma ficção) duma realidade palpável. Por outras palavras, a família não passa duma realidade imaterial que, em síntese, não representa ligações de sangue mas ligações em função duma “alma” comum (que nem mesmo a forma como os métodos quantitativos quiseram esvaziar de afeto a subjetividade humana conseguiram destruir). Aliás, aqueles que, seja pelos motivos que forem, reclamam a crise da família, talvez estejam, ancorados em pormenores, a ver nas famílias dos outros a falta do espírito de família (ou do espírito santo, se preferirem) que sentirão na sua.

De uma ideia como esta de família não está arredada, ao contrário do que possa parecer, a presença do conflito; antes pelo contrário. À paz nunca se chega sem conflito! Porque, inevitavelmente, paz não significa uma homogeneidade (quase acéfala) de pontos de vista mas, antes, uma escolha e um compromisso que duas pessoas (por inerência, diferentes) assumem, e para o qual trabalham, todos os dias (sem nunca desconsiderarem as suas diferenças), em função do bem superior que o vínculo entre elas passa a valer. Por isso mesmo, as famílias saudáveis acolhem o conflito e a discussão, porque isso representa formas diversas desse trabalho de ligar as pessoas pelas suas escolhas e pelos seus compromissos. Mas conflito e discussão têm regras: a primeira das quais passará pela paridade. Isto é: numa família não é possível exigir sem se dar. Ou seja, quanto mais preciosa for uma relação mais frágil ela se torna porque estará perante o permanente e acrescido escrutínio de ligar sabedoria e bondade ao “espírito de família”, criado por todos.

Sendo assim, numa família, os pais nunca representam a verdade: mas a convicção de nunca se esmorecer quando se luta por ela. Será, porventura, em função do esmorecimento que a maioria dos pais denota, com os anos - quando os filhos se tornam mais crescidos e mais complexos ou quando a família se alarga e fica mais plural - que a sua função de guardiões do espírito de família pode ir morrendo. E, com ela, eles morrerão como pais. E morrerão mais facilmente quando fogem ao conflito e à gestão da dor que ele sempre traz. Isto é: numa família, pode-se magoar se alguma dor circunstancial se gera em função da convicção de que a verdade em que vá “embrulhada” acabará por trazer os ganhos que, para além de a justificarem, a diluem, rapidamente. Já se se usa os outros para “despejar” sobre eles o nosso sofrimento, estaremos a usá-los sem medir as fraturas que isso provoca numa relação. A dor que se compartilha com afeto aproxima; a dor que se projeta desliga-nos deles e afasta-os de nós. Indo ao banal para tentar ilustrar tudo isto melhor: o “façam as pazes”, com que os pais apelam para a conciliação das birras de dois filhos num compromisso de entendimento comum, é confuso! Porque ou se faz a paz - uma paz (a dois, claro) - ou fazendo-se duas pazes é convidar a que se esbatam os argumentos sem que eles nunca se debatam e sem que quem os guarda nunca se comprometa. Ora, visto assim, fazer as pazes é aquilo que, por isso mesmo, mais afasta as pessoas por mais que, em aparência, isso sugira o contrário.

Uma família é, pois, o contrário da auto-ajuda. A auto-ajuda presume a auto-suficiência e a omnipotência incompatíveis com o espírito de família, enquanto a ajuda representa um apelo de honestidade, de humildade e de coragem duma pessoa em relação a alguém que lhe merece carinho, estima e respeito. Sem pedirmos ajuda pensamos pior. E sem ela nunca somos família. Porque é a transparência e a honestidade recíproca entre duas pessoas que faz com que se vá da honestidade à verdade. E, assim, se gere um com-senso (que não representa uma redução de verdade mas um acréscimo em direção a ela, a que se chega quando duas pessoas confiam as suas diferenças à mesma vontade de se ligarem entre si).

2. A família (descrita como se fosse algodão doce) tem sido uma invenção a que os pais, quando desistem de construir o espírito de família, todos os dias, inventam para as crianças. Dando a entender que há um lugar onde não há estranhos nem familiares e onde todas as pessoas são amigas. O que não é verdade.

Muitas das pessoas que, formalmente, são da nossa família, com o tempo, tornam-se estranhos colados a nós. E, pior, se todas as pessoas são amigas, não se percebe porque é que há avós, e há pais, e tios ou primos para quem o ódio, a inveja e a vaidade prevalecem sobre o espírito do Natal. Ora, numa família as pessoas não são nem amigos nem são da família. São família. Melhor: somos família. Porque é a dimensão essencial da contribuição de cada um para o espírito de família que faz com que, sem todos eles, ela não exista.

Aliás, sempre que duas pessoas se ligam e coabitam e convivem, e se fala que criam uma família, eu receio. Porque parece existir aí o devaneio de que uma família se cria do zero. E, se for assim, está a tentar-se criar uma família fazendo por ignorar aquela que se “tem”, ou fugindo dos maus exemplos que ela gerou. Como se uma família fosse a engenharia que resulta dum projeto de arquitetura. E isso nunca é possível. Porque a família nunca se faz sem memória e sem futuro. Pode, então, perguntar-se por que motivo as crianças parecem, por vezes, desligar-se do espírito da família? Porque quando olham para o descuido, o desmazelo ou as desconsiderações que os avós e os pais trocam entre si (ao mesmo tempo que uns e outros ritualizam os momentos de família, suspirando para que passem depressa) aprendem, com os seus exemplos, a identificar as formas pelas quais o espírito da família não passa duma ficção.

3. Não é possível sermos bons pais sendo maus filhos, e vice-versa. E muito menos é possível sermos maus pais ou maus filhos e, ainda assim, sermos uma família. Nem é possível sermos felizes anulando partes das nossas relações. Porque a felicidade é um estado onde tudo parece, subitamente, tão ligado, tão compreensível e tão simples que, inevitavelmente, a felicidade é um estado súbito de sabedoria em função da comunhão a que, pelo menos, duas pessoas conseguem chegar quando confiam as suas diferenças à mesma vontade de as ligarem entre si. Não há, pois, forma de se ser feliz sozinho. Aliás, não é por acaso que a ideia de família se associa ao espaço da casa. A casa será, quando muito, o lugar simbólico onde se projeta o espaço que as pessoas dispõem dentro de nós e aquele que, em consequência dos seus gestos, nunca desistimos de guardar, em nós, para elas. Não há casa sem família; e vice versa. É claro que, quando - por exemplo, no direito - se fala de “casa ou morada de família” estará a tentar-se materializar um bem imaterial. Uma família não é um lugar onde se more; é o lugar a que ansiamos por chegar. Família é peregrinação; nunca é o ponto de chegada. É uma ilusão fascinante e mágica, portanto.

Acredito, por isso, que quando se diz que o Natal, por exemplo, é a festa da família, não deixa de ser sugestivo que, ao mesmo tempo, inúmeros adultos confidenciem que ele é, sobretudo, importante para as crianças. É como se as pessoas dissessem, por outras palavras, que à falta de acreditarem no espírito da família (no presente ou no futuro) que ele só existirá (num passado remoto) - unicamente, como recordação - ou num símbolo religioso no qual revêem a sua infância e o espírito santo que, ao menos aí, prevalecia. Aliás, não é por acaso que, invariavelmente, no Natal, as pessoas se deprimam mais. Não o fazem em função de alguém precioso que lhes falte. Por mais que o afirmem. Mas porque fazem confluir para essa ausência tudo o que lhes falta para que sintam que o espírito da família (ou o espírito do Natal, que é sinónimo, tal como o espírito santo) faça parte delas, todos os dias. Isto é: talvez o Natal só se tenha tornado o frenesi comercial e eufórico que é porque a maioria das pessoas, cada uma a seu modo, não se sente nem prenda (para tantas pessoas como desejaria) nem presente (em todas delas da forma como devia estar).

4. É mau, portanto, que sejam as crianças, mais que quaisquer outros, que acreditem na família. É mau, portanto, que a maior das pessoas endeuse a família mas não acredite nela. Porque, bem vistas as coisas, é o espírito de família que gera a fé. A fé no amor, no futuro e nas pessoas. É, pois, por falta de fé na família que os pais, ao mesmo tempo que ritualizam o Natal, se tornam desmazelados em relação a ela.

Mas os pais, os bons pais, podem ser os guardiões do espírito santo. Os guardiões do espírito de família funcionam como ancoradouros e como peregrinos, ao mesmo tempo. Guardam uma ideia do amor. E nada mais. Não falam demagogicamente dele, como se ele fosse fácil. Ou, até, mesmo elementar. Os guardiões do espírito de família percebem que ao amor nunca se chega sem se lutar por convicções; e sem as partilhar. Nunca se chega sem conflito, sem escolhas e sem compromissos. Sem honestidade, sem humildade, sem coragem e sem dor! E sem gestos, claro. O amor dá muito trabalho, portanto.

Para que serve, então, uma família? Para encontrarmos nela exemplos para estimar o amor. Fonte: Pais & Filhos

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