CONVALESCER. AINDA SE LEMBRA DESSA PALAVRA?
Nesta edição de início de ano e em pleno Inverno, deixamos uma sugestão de leitura do conceituado pediatra Mário Cordeiro que nos ajuda a reflectir sobre o equilíbrio entre trabalho e família e muitas outras questões associadas.
O mote, em jeito de provocação, é deixado pelo autor: “As crianças sofrem por não poderem ficar em casa o tempo suficiente para curar as doenças. Pais, empregadores e políticos são muitas vezes coniventes. Continuaremos a assistir a isto?”
CONVALESCER. AINDA SE LEMBRA DESSA PALAVRA?
Convalescença. Lembram-se da palavra? O Dicionário de Sinónimos diz que significa “arribação, melhoras, restabelecimento”. Infelizmente, quase desapareceu do léxico português e, mais grave, da prática do dia-a-dia. Vem isto a propósito dos surtos de doenças, a maioria virais, próprias da época, que afetam muitas crianças. Não sendo doenças graves em crianças saudáveis, as adenoidites, otites, bronquiolites e restantes infeções respiratórias, gastroenterites, gripes, doença “boca-mão-pé”, mononucleose e tantas outras têm “deitado muito abaixo”, quer crianças, quer adolescentes. Sentem-se anormalmente cansados, extenuados, por vezes com tosse seca e metálica, outras com dores de cabeça ou barriga, dores nos músculos das pernas, diarreia, febre ou falta de forças.
Todavia, após uns momentos de quase-pânico e de corrida aos serviços de urgência (onde muitas vezes se contraem estas doenças na sequência de uma ida extemporânea e apressada, em que a razão contou pouco face à emoção), mal a febre desaparece, os pais, pressionados pelos empregos, pelo “dia-a-dia” e mais umas quantas coisas, levam novamente as crianças à escola, para muitas delas voltarem para casa doentes, às vezes com situações mais graves, como infeções bacterianas.
A cura clínica (ausência de sintomas e de sinais) tem um determinado timing. Contudo, para a maioria das infeções por vírus e bactérias, a cura dos tecidos e células, ou seja, a cura funcional dos órgãos, demora muito mais tempo e requer o mínimo de fatores agressores (ambiente urbano, ambiente da escola, tabaco, poluição, acordar cedo, frio, correrias) e um máximo de fatores protetores (bom ar, dormir até tarde, descansar, boa comida). As leis laborais parecem, em muitos casos, feitas “às três pancadas” e, mesmo quando corretas, são frequentemente ignoradas por quem tem “a faca e o queijo na mão”, ou seja, os empregadores, os serviços de pessoal e até chefes diligentes que se esquecem que eles próprios têm filhos ou, muitas vezes, mesmo os tendo não precisam de faltar ao emprego porque têm alguém que fica a zelar pelas crianças. Curiosamente, estes “chefes cães de fila” são tanto homens como mulheres.
A questão fulcral não é apenas as crianças terem tempo de se “refazer”, mas de não terem de sair de casa quase de madrugada, quando os pais vão para o emprego, apanharem frio, verem o seu sono cortado e “desaguarem” em casa dos avós ou na ama sem poderem descansar, deixar os ritmos biológicos acertarem-se e seguirem esse “protocolo” que é o de convalescer. Por vezes, também acontece os pais poderem, em termos laborais, tirar uns dias, mas preferirem ir trabalhar, não apenas pelo carreirismo, como por – para esses pais – estar com os filhos ser uma autêntica maçadoria, ainda por cima com eles semi-doentes.
Neste país (e porventura noutros), o diktat do trabalho sobre tudo o resto – doença, lazer, férias, descanso, etc. – atingiu níveis inimagináveis. Muita gente já não trabalha para viver, vive para trabalhar. Tantas vezes se poderiam organizar os serviços de modo a que os pais pudessem exercer a parentalidade sem sentimentos de culpa, traição ao patrão ou aos colegas, ou penalizações nas progressões laborais e nos ordenados.
As crianças portuguesas já não convalescem. Por várias razões plausíveis (na perspetiva dos interesses dos pais) mas perante a passividade de quase todos, incluindo o Estado. Se não convalescem, e lá volto ao Dicionário, também “não arribam, não melhoram e não se reestabelecem”. Constato isso todos os dias na prática, e como eu, centenas de milhares de pais e profissionais. Fica aqui o desabafo… e o apelo, a quem de direito!
Autor: Mário Cordeiro
Fonte: Pais & Filhos